O Pingo Doce, os cartões e a concorrência
24-08-2012 22:29
Estranha forma esta que o Pingo Doce encontrou para mostrar o amor que diz ter pelos seus clientes: retirar-lhes a comodidade, a segurança e a despreocupação de poderem pagar as compras até 20 euros com cartões electrónicos obrigando-os, na larga maioria dos casos, a regressar à pré-história dos meios de pagamento, a essa coisa cada vez mais estranha chamada notas e moedas.
É certo que, dentro da lei (como é o caso), o Grupo Jerónimo Martins toma as decisões de gestão que bem entende. Mas pelo menos que nos poupe à demagogia de dizer que o benefício da medida é “para si”, caro cliente. Alexandre Soares dos Santos não deixaria passar, e bem, tamanha tentativa de ilusionismo a um político.
A poupança prevista nas comissões pagas ao sistema financeiro é de cinco milhões por ano. Pelas contas do ano passado, a quantia equivale ao lucro obtido pelo grupo em cinco dias. Então o amor pelos clientes não vale o lucro obtido até ao dia 6 de Janeiro de cada ano? É que a comodidade e a segurança do pagamento com cartão são um bem real, verificável e apreciado. Já a devolução dos cinco milhões em descontos aos clientes, quem é que a vai comprovar nos sempre complicados relatórios de um grupo daquela dimensão?
Nas contas que fez, o Pingo Doce confia que perderá pouco negócio ao exigir pagamento com dinheiro numa parte substancial das suas vendas. É a vantagem de ser a cadeia mais vasta de supermercados médios de proximidade, mais bem implantada em zonas residenciais e, por isso, a que está mais “à mão” e de acesso mais rápido numa maioria de vezes. Isso tem um grande valor.
Independentemente da sua razoabilidade, esta decisão do Pingo Doce vem alertar o consumidor comum para o problema de falta de concorrência que existe nos sistemas electrónicos de pagamento em Portugal. Cada vez que entregamos um cartão electrónico (de débito ou de crédito) para pagar uma compra, estamos a gerar uma comissão que é paga à Unicre pelo comerciante. Pela tabela da empresa, as taxas podem ir quase até aos 5% do valor da compra, penalizando mais as compras de valor mais baixo e os comerciantes com menor volume de negócios.
O grande problema é que, sendo a única empresa a prestar este serviço no país, a Unicre pode dar-se ao luxo de cobrar o que bem entende aos comerciantes. Ou é como ela diz ou não há terminais nem sistema para pagamentos electrónicos nas lojas. Cálculos feitos há uns meses pela APED - a associação das empresas de distribuição, portando uma das principais interessadas no assunto - dizem que as taxas pagas pelas lojas por pagamentos electrónicos são mais do dobro da média europeia.
Já em tempos houve o lançamento de uma rede concorrente à Unicre, chamada Netpay. Mas, provando que pão de pobre cai sempre com a manteiga para baixo, azar dos azares o projecto era do BPN. Quem sabe se os terminais e equipamentos dessa rede não serviram mais para negócios duvidosos do que para uma meritória tentativa de ameaçar o monopólio da Unicre.
Não gerando o mercado soluções viáveis de concorrência num sector crucial como o dos meios de pagamento, o que se pergunta é o que andam as entidades reguladoras a fazer. A Autoridade da Concorrência não tem nada a dizer? Não tem aqui uma intervenção urgente a fazer? Vá lá, o sistema financeiro não pode continuar a ser a vaca sagrada quando toca à regulação da concorrência.
Jornalista, editor de Economia da RTP
Escreve à quinta-feira
Escreve de acordo com a antiga ortografia